arame, ferro e madeira
por Cristalinda
Sobressalta-me a ideia do Carnaval. Desde pequena nutro um desvario emocional por esta época do ano que conflui inevitavelmente naqueles três dias alucinantes.A minha mãe impunha-me condições para marchar no corso do Rossio. Os tempos eram de encarniçada competição e bastas vezes a alegria transformava-se em violência. Assim, no despique, tinha que prometer que a minha participação se limitaria às orlas da confusão, onde o olhar protector da minha mãe lograsse alcançar o suposto comedimento. Que inveja tinha do meu irmão, isento das grilhetas do bom senso que me eram impostas a mim.Ainda assim, e salvaguardada pela desculpa dos empurrões, mal a cambada do Paço arremetia ao tradicional encontro, atirava-me de alma e coração para o meio da contenda gritando pelo meu Rossio até que a voz se sumisse. Parecia uma boneca de trapos dentro de uma máquina de lavar roupa a 80º e em plena centrifugação. Ali é que a mãe não me ia buscar. Mas por azar, lá vinha o meu irmão armado do seu poder paternal pôr ordem na desmiolada. Lá voltava à segurança da orla, contrariada. Recuperado o fôlego, aproveitava uma desatenção da mãe e ala que se faz tarde, irrompia aos saltos por entre os matulões do Paço que, dada a minha tenra idade, subestimavam a minha garra e abriam alas à minha intrepidez.Extenuada mas convicta que, sem a minha presença o Rossio não lograria vencer, voltava para casa de lagrimazita no olho, a pensar com os meus botões porque é que o Carnaval passava tão depressa.Precisava de uma mês para recuperar da saudade que se me instalava na alma. E não eram raras as vezes que, pela calada do dia, eu própria ia fazer o enterro do meu Carnaval. Qualquer resquício de um carro alegórico servia para cumprir as exéquias. Ali ficava acariciando as flores que a chuva já desbotara, adorando os interstícios de arame, ferro e madeira que tinham na sua glória efémera encantado os meus olhos agora tristes e pesarosos. Bem sabia que para o ano havia mais, mas o tempo de uma criança esgota-se no momento presente. Foi assim durante muitos anos.Agora já não salto nem grito no despique, mas a comoção e a emoção ainda vivem dentro de mim. De tal forma que invariavelmente me humedecem os olhos quando os dois bairros se cruzam, como se naquele momento passasse por mim toda a minha vida e todas as recordações projectassem a história da minha própria existência. É assim o carnaval de Canas.
foto Rui Pina
Cristalinda escreve no blog
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