árvore do Entrudo
por Galinha Riça
Deus criou o paraíso de Canas de Senhorim. Deslumbrado com a Sua obra decidiu habitá-la. Primeiro criou o bairro do Paço. Depois, das entranhas deste, tirou um pedaço e formou o Rossio.Os dois bairros conviveram harmoniosamente durante muito tempo, usufruindo das dádivas terrenas que generosamente Deus lhes tinha concedido, até que um dia, cansados pelo tédio da eterna felicidade que lhes tinha sido destinada, ousaram desafiar a graça divina.No jardim paradisíaco que habitavam havia uma árvore encantada cujo fruto se supunha capaz de curar os males da alma e do corpo - a árvore do Entrudo. Os seus frutos continham o doce veneno de Afrodite e proporcionavam delírios alucinogénios fantasiosos, estimuladores dos comportamentos mais estouvados. Deus tinha-lhes recomendado que não ousassem provar de tal fruto, pois, embora sedutor, simbolizava a origem do mal e quem dele provasse ficaria eternamente condenado.Contudo, o Rossio, mais jovem e como tal mais ousado, não resistiu ao encantamento e colheu o fruto proibido. Porém, receoso dos seus efeitos e da condenação divina deu-o a provar inicialmente ao Paço. Este, ainda que hesitante, não se fez rogado e caiu na tentação. Logo uma força desconhecida lhe retemperou a alma e as cores. Desatou aos saltos e aos gritos num histerismo misto de alegria e de loucura. O Rossio não lhe ficou atrás. Acabaram por devorar o fruto em três dias de folia e algazarra descontrolada.No último dia, quando do fruto já só restava uma dentada, gerou-se a controvérsia. Quem é que merecia o último pedaço, quem é que por direito deveria prolongar a euforia. Ocorreu logo ali uma grande zaragata e um despique fervoroso entre os dois bairros para decidir quem sairia victorioso na apoteose final. Em suma, quem ficaria com a derradeira trincadela do fruto da árvore do Entrudo. Quem ganharia o Carnaval.Foi nessa altura que, irrompendo do Seu sossego celeste, surgiu Deus. Ainda estremunhado por ter sido arrancado ao Seu sono divino pelo desaforo dos beligerantes, apresentava um semblante carregado, nada próprio da Sua habitual placidez. Dirigiu-lhes a palavra num tom pouco amistoso:- O que vos disse eu quanto à arvore do Entrudo?- Mas, Senhor a culpa foi do Rossio, que não atendendo à Tua recomendação colheu o fruto… – desculpou-se o Paço.- Mas quem lhe tomou o gosto foste tu – retorquiu o Rossio.Deus impacientou-se e mandou-os calar. Depois na Sua eterna sabedoria sentenciou:- Perante o vosso desrespeito condeno-vos a ambos a digladiarem-se perpetuamente uma vez por ano, durante três dias e, para remissão do pecado, a arderem em praça pública ao quarto dia. Além disso, tu, Paço, por terdes aceite comer do fruto proibido, haveis de marchar eternamente para o Rossio, para aí te sujeitares ao confronto.Regozijou o Rossio, com a sentença aplicada ao Paço. No entanto…- E tu Rossio, por terdes desobedecido às minhas ordens, até ao fim dos tempos nunca haveis de ganhar um só confronto. Cumpra-se a minha vontade.E assim, ao longo dos anos se tem cumprido a vontade de Deus em Canas de Senhorim. E assim será até à eternidade. Ámen.
Bons repenicos
Crónicas da Galinha Riça - O Carnaval
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