Canas OnLine

13/02/2006

Pobre democracia a nossa!*

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Saiu engalanado, com o traje do­mingueiro, pouco depois dos pri­meiros raio de sol surgirem no céu. Auxiliado pela muleta, que usa há mais de dez anos devido à velhice, dirigiu-se à rua central da vila de Nelas. Afinal, era dia de festa! Vi­nha aí o mais alto representante da nação. O Presidente da República, Jorge Sampaio, tinha anunciado a sua primeira visita ao concelho e não queria perder a oportunidade de o ver ao vivo. "Para ver se é tão simpático como na televisão!" Além disso, também queria "cumprimen­tar a Dr. a Maria José Rita". Esperou. Esperou. Esperou. Uma. Duas. Três horas. O relógio marcou as llh00. Nada! Uma vizinha explicou-lhe, quase aos gritos - talvez por pensar que idade é sinónimo de surdez -,
que "na rádio disseram que [o Presidente] não ia à vila, por causa de Canas de Senhorim".
O triste episódio retrata o sentimento que se viveu em Nelas na passada quinta-feira. Enquanto várias dezenas de pessoas se concentravam junto às principais ruas da vila para receber Sampaio, este utilizava estradas secundárias para chegar ao concelho que nos últimos oito anos tem feito as primeiras páginas e aberturas de noticiários, devido à luta separatista da freguesia de Canas de Senhorim.

Apesar do segredo absoluto feito em volta do programa presidencial, apenas é conhecido por alguns dos colabora­dores mais próximos do Presidente, a visita foi alterada à última hora. A própria presidente de Câmara de Nelas, Isaura Pedro, esperava Sampaio no Centro de Estudos Viti­vinícola do Dão, quando foi informada de que o Presidente ia, afinal, deslocar-se à zona industrial e visitar a empresa Coldkit Ibérica. Até lá, o carro da Presidência da Repúbli­ca circulou sem as habituais bandeiras de Portugal, numa tentativa óbvia de passar despercebido.
O líder do Movimento de Restauração do Concelho de Canas de Senhorim (MRCCS), Luís Pinheiro, tinha avisado que a visita era considerada uma "humilhação" e uma "pro­vocação" à freguesia. E, ainda que estivesse a "tentar conter a revolta dos populares", admitiu que tudo podia acontecer! Por isso, um forte dispositivo policial, que incluiu pelo me­nos oito carrinhas com elementos do Batalhão Operacional da GNR (estacionadas a pouco mais de um quilómetro da empresa visitada por Sampaio), foi mobilizado.
Mas, mesmo assim, o Presidente preferiu não arriscar. Para evitar que a sua última Presidência Aberta ficasse manchada por alguma manifestação ou por alguns apupos e vaias, Sampaio optou por chegar e partir quase em segredo. Não tivesse a comunicação social anunciado previamente que Nelas se incluía entre os 11 concelhos a visitar e a passa­gem-relâmpago -45 minutos - do chefe de Estado por aquele município seria muito similar à que José Sócrates realizou
em Dezembro a Cabul, onde almoçou com os militares em missão no Afeganistão. Salvas as óbvias diferenças, já que a visita do primeiro-ministro durou cerca de quatro horas, além de não ter tido necessidade de seguir por estradas se­cundárias.
Plagiando um participante do Fórum da TSF, "pobre o pais que recebe O seu Presidente com fanfarras e bombos", mas mais pobre é o Presidente que tem de se esconder para passear pelo seu próprio pais. Será que a "ameaça" de Canas de Senhorim justificava realmente tanto segredo? Será que algumas dezenas de manifestantes, na maioria idosos "armados" com bandeiras, justificariam a mobilização de um tão grande aparato policial? Será que Jorge Sampaio, quando vetou o decreto-lei que permitiria a criação do município de Canas de Senhorim (o que lhe valeu o epíte­to de "inimigo" da causa), não agiu, afinal (como prefiro acreditar), de acordo com a sua consciência e por causas objectivas?
Atrevo-me a plagiar agora Luís Pinheiro, utilizando a palavra "humilhação". Saiu humilhado o concelho, es­pecialmente as populações de Nelas e Canas, o executivo municipal, que foi ludibriado, e o próprio Presidente da República, que agiu como se tivesse algo a temer. Pobre democracia a nossa!.
*Crónica de Maria Albuquerque in Público de 13 de Fev 06

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