Ainda dizem que as flores não andam!
por Cristalinda
Cai a tarde nas Quatro-Esquinas. O vazio amputado de uma das fachadas é como um bocado arrancado de mim. É um pouco da minha história que se esvai, que se perde irremediavelmente, como perdidas estão outras memórias de outros tempos e de outros lugares. Este largo soalheiro anuncia o peso da modernidade e do progresso, e as esquinas, outrora cúmplices dos meus passos de catraia exploradora, remetem-me agora para outros passeios.
Aos domingos, pela mão da minha tia, lá íamos vaidosas ao Café Rossio, ex-libris da terra, onde o café era mais café. Eu, na mira do “rajá” prometido, ela, de rapaz promissor. O Sr. António João, bem-humorado, atirava um piropo amoroso à minha tia, do género “ainda dizem que as flores não andam”, enquanto escolhia meticulosamente os grãos de café. Primeiro espalhava-os numa bandeja de servir à mesa (naquele tempo um simples café tinha honras de bandeja e empregado de laço). Depois, munido de artes que só ele dominava, esticava o dedo indicador e exercia a sua justiça ao lote, “tu para aqui, tu para ali e tu vais fora”. Que cheirinho emanava do café que o Pedro trazia para a mesa, após aquela selecção.
Às vezes também íamos aos sábados. Creio que na altura se trabalhava aos sábados de manhã, mas, mesmo assim, a minha tia lá arranjava tempo para ir à bica, devidamente acompanhada pelo salvo-conduto, que era eu. Não pensem que nessa altura, as moças casadoiras se livravam de censuras e reparos se ousassem frequentar sozinhas o Café (se calhar, ainda hoje sobrevive, nalgumas mentes, essa reprovação). Ora, para obviar tal desaprovação social, nada melhor que uma sobrinha como livre-trânsito para realçar o pudor. Era aí que entrava eu, no meu vestidinho de chita e sandália domingueira. Depois de inspeccionada até às profundezas do lóbulo auricular, não fosse a menina comprometer o bom-nome da família com alguma crosta de surro pespegada à tez, “ala que se faz tarde”, aprovava a minha tia em ânsias de rapariga solteira.
Despachado o “rajá”, cirandava por entre as mesas de tampo em mármore escuro e cadeiras em madeira castanha, confortavelmente resistentes ao meu baloiçar de menina. Sentados ao fundo, nas poltronas, senhores distintos, discutindo assuntos sérios, enchiam a minha imaginação de tramas e conspirações, pois os tempos eram conturbados e o local discretamente apropriado. O Professor, muito cioso da sua pochette, conjurava intrigas revolucionárias no conforto da lareira granítica. Comunista devoto, anunciava aos convivas golpes e contra-golpes a cada artigo do jornal. Os jornais eram a sua cartilha. Solitário e indiferente aos remoques políticos, o Artista, fechado na sua habitual gabardina, fumava pesaroso. Na sua loucura inofensiva, distinguia-se pela pose sobranceira e pela boquilha dourada, da qual, a espaços, retirava citações poéticas. No bilhar, senhores mundanos, de fato e gravata baratos, trocavam impressões sobre fortunas perdidas no casino da Figueira.
Fascinavam-me a mesa de bilhar e as carambolas conseguidas por aqueles senhores perfumados. Gostavam de se meter comigo e eu fazia-lhes o gosto empurrando-lhes levemente o taco no pico da concentração. “O raio da miúda!”, praguejavam, enquanto eu, pernas para que vos quero, escapulia ágil por entre as cadeiras e estacionava junto às montras, a namorar os bonequinhos, as garrafinhas, os livros aos quadradinhos, os chocolates e os rebuçados. Só o Mário Pica, na sua tonteira plácida, me tirava do deslumbramento. Mãos atrás das costas, corpo dobrado para a frente, sorriso seráfico, percorria as mesas do café na esperança de um cigarro ou de uma beata esquecida. Menino grande sem condição, aprendeu a sorrir porque sim, e nunca mais se esqueceu.
Também ali se faziam e desfaziam namoros, se davam e devolviam fotografias, se prometiam noivados e juras de casamento, para gáudio do Sr. Pinga das Gordas, que via assim assegurados os proventos de fotógrafo oficial da terra. Por entre bilhetinhos trocados à socapa e intimidades disfarçadas, sempre havia tempo para tentar a fortuna que o Sr. Acúrcio, o cauteleiro, garantia em duodécimos. “Ele há horas de sorte...”, apregoava, ainda que ciente do seu próprio infortúnio e da maleita que lhe tolhia os membros.
Quando a minha irrequietude ultrapassava os limites que a minha tia considerava adequados, era remetida para os banquinhos de ripas vermelhas do terreiro da capela. Bem que eu queria misturar-me com os rapazes da minha idade que por ali jogavam à bola, mas o olhar reprovador da minha tia e o vestido imaculado desaconselhavam qualquer ousadia. Ali ficava, joelhos juntinhos, como a minha mãe me tinha ensinado, apreciando o cheirinho da fruta que o Sr. António e a Menina Natália dispunham à porta do Lugar, as senhoras da Varanda da Má Língua, que desconheciam os ensinamentos da minha mãe, o Sr. Pereirinha, muito dono do parqueamento do seu Mercedes, a loja do Sr. Alberto e da Dona Eracema, onde a mãe fazia as compras, a padaria do Sr. César, que vendia a melhor broa do mundo, a Socolar, onde se alinhavam aqueles “dossiers” fantásticos de argolas, novidade na época, que ainda preservo algures no sótão, o Café Belcanto e as filhas do dono, por sinal muito bem criadas, o Sr. Pinheira da Barbearia eternamente à conversa com o Sr. Jorge da Farmácia e, fascínio dos fascínios, o colorido atrevido dos vestidos curtos das mulatas hospedadas na Pensão Monteiro, vítimas da descolonização das províncias africanas, autênticas impalas fora do habitat, tentando, com o brilho sedoso que lhes emergia dos corpos, ofuscar frios desconhecidos e disfarçar mágoas passadas.
Se fosse por altura dos Santos Populares ainda podia assistir ao despautério de alguma senhora do Rossio de Baixo, retardada na recolha dos vasos que uns “bandidos”, pela calada da noite, como manda a tradição, deixaram a embelezar os passeios das Quatro-Esquinas. “Então, os vasos ganharam pernas?”, perguntava o Sr. António João, “ganharam pernas o carvalho”, respondia esbaforida a senhora. Ruborizava a minha tia, ria a plateia e consolava-me eu, autorizada pelas circunstâncias a registar os palavrões proibidos.
Noutras alturas quebrava-se o encanto. A loucura instalava-se no largo, personificada na herança dramática da guerra do ultramar. O ex-soldado, se bem me lembro, maqueiro de profissão, de tanto mutilado carregar, acabou amputado do juízo e baralhado no cenário. A epilepsia tomava conta dele e as Quatro-Esquinas transformavam-se em palco de batalhas sangrentas e os transeuntes em inimigos emboscados. Espumava ordens e desacertos para incómodo dos presentes e desespero da sua mãe que acorria ao largo, suplicando humildemente que lhe internassem o filho. Carregava sózinha, ainda, uma guerra acabada.
Intimidava-me o infortúnio do soldado-maqueiro e então, apertadinha de xixi que o medo tornara premente, traçava uma linha recta entre o terreiro da capela e a porta do Café-Rossio e corria desenfreada para o aconchego do café. Deixava para trás o largo e o passado que agora me ocorre.
Cai a tarde. Num banco do terreiro da capela de S. Sebastião estendo o olhar de esquina a esquina, reconstruo alçados e montras, retenho cheiros e sons, e recordo carinhosamente as pessoas que habitaram as Quatro-Esquinas da minha meninice.
Cristalinda escreve no blogue
20 comentários:
...um lugar mágico...
um texto mágico!
Parabéns
Genial! Simplesmente genial!
As suas memórias contam a história que eu gostaria de contar, porque também são as minhas...
Tão bem condensado, cada palavra uma imagem, um reflexo das minhas próprias lembranças.
Pena não ter reparado naquele rapazito de calções de veludo que, por vezes, pelos mesmos motivos, se sentava nos bancos de ripinhas vermelhas, apreciando a menina de vestidinho de chita e sandálias domingueiras...
Muito Bom.
É também o largo dos inesquecíveis despiques Paço-Rossio.
Não podia deixar de registar aqui o quanto me agradou a leitura deste texto, quando a Cris mo deu a ler.
Parabéns pelo encanto que devolveste às nossas Quatro-Esquinas
o que eu vou dizer depois de um texto desta 'dimensão'
Que melhor elogio posso fazer senão admitir que já li o texto três vezes. Prabéns Cristalinda. Uma viagen fantástica que me foi maravilhosamente traduzida por um canense.
As flores andam ao sopro dos ventos!
@Achadiça
obrigado por ter enviado este "relato de 'rara beleza' de uma época" que supera em tudo 'o desafio'.
@Cristalinda
Eu era um "dos rapazes que por ali jogavam à bola"...
arrepiante!
@Amef
O que aconteceu ao Mário?
Tantas foram as vezes que tinha-mos que fugir, quando o Sr. Óscar da tinturaria vinha para nos tirar a bola por ela bater na porta de entrada, recordo-me também dessas corridas de caricas no largo do Pataco, por cima da pedra que contornava o chafariz. E os jogos dos berlindes, as brincadeiras na bomba da água, uma vez levei com a manivela na cabeça!
Amigo amef:
Quanto às esferas dos rolamentos, pedia ao "Bilinho" para mas trazer da sucata dos fornos!
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E as corridas com pneus velhos de bicicleta, saltar ao eixo...
Pois o largo da capela era o nosso poli desportivo!...
Abraço para ti também, e continua a partilhar os teus arquivos.
Daquela época, das pessoas, dos lugares, das lembranças, ficaram a magia, o encanto e a nostalgia, sentimentos que transparecem nas palavras que gentilmente dedicaram ao texto. São estas e outras estórias que, recordadas assim, pelo crivo da memória individual, testemunham a História colectiva de um povo e das suas gentes.
Agora, outras estórias acontecem para memória futura, e o progresso de hoje fará história amanhã. Estou crente que este devir perpetuará a herança que nos foi deixada e reforçará empenhos antigos. Como alguém disse, esta terra ainda vai cumprir seu ideal. Obrigada pela vossa sensibilidade.
Um agradecimento muito especial ao Amef, que cedeu generosamente as fotos que ilustram este texto.
Aquele abraço e boas minhocas
Cristalinda
Olhe que a música que evocou não anda longe dos tempos que tão bem retratou...
FADO TROPICAL
Chico Buarque 1972/1973)
Oh, musa do meu fado
Oh, minha mãe gentil
Te deixo consternado
No primeiro abril
Mas não sê tão ingrata
Não esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dose de lirismo
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar,
trucidar
Meu coração fecha aos olhos e sinceramente chora...
Com avencas na caatinga
Alecrins no canavial
Licores na moringa
Um vinho tropical
E a linda mulata
Com rendas do Alentejo
De quem numa bravata
Arrebato um beijo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto
Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão de incesto
Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadura à proa
Mas o meu peito se desabotoa
E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa
Guitarras e sanfonas
Jasmins, coqueiros, fontes
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre Trás-os-Montes
E numa pororoca
Desagua no Tejo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
Já agora, também eu fiz do terreiro da capela o meu santuário desportivo... com todas as modalidades até agora referidas. Nunca defrontei o Amef numa corrida de caricas. Na minha altura já andava ele a organizar concertos de Rock da Pesada e parece que lhe ficou o gosto :). A única vez que o "defrontei" foi na final do 10+7, organizado pelo saudoso António João (entre outros). Perdi, aliás perdemos, pois o confronto (saudável) era por equipas. Bons tempos Amef.
Cumprimentos
Amef
Pois a minha casca será vermelha. Não me ocorre é nenhuma fruta! Pode ser de tomate?
Se o festival que trazes em mente tiver pernas para andar posso assegurar-te alguns grupos (não são conhecidos do grande público mas têm qualidade). Alguns elementos desses grupos fazem o favor de ser meus amigos, pelo que o preço cobrado terá isso em consideração. Estarei à disposição para fazer os contactos. Aliás, gostava de deixar esta possibilidade aos organizadores do Canas em Movimento ou de outros eventos culturais. Terei muito gosto em colaborar se para isso for solicitado.
Aproveitando este comentário e, sem querer substituir-me aos critérios editoriais do Jornal Canas de Senhorim, não te parece que este texto da Cristalinda poderia ser publicado? Penso que a Cristalinda não se oporá. Deixo a sugestão e a pergunta implícita à Cristalinda.
Cumprimentos
CRISTALIIIIIINDA?
@Amef
Que tal um jogo do prego com uma lima bastarda?
@Portuga Suave
aproveito para pedir ao Amef que faça publicar, o seu excelente texto de resposta ao Zulmiro 'Brincadeira de mau gosto' no nosso JCS.
Uff! Vim a correr... Amef e Portuga tenho muito gosto em que o texto seja publicado no JCS. Vou enviá-lo em formato Word para o Amef.
Eu jogava à macaca e à capela...com a filha do Óscar da tinturaria, a Paulinha. Que será feito dela? Nunca mais a vi.
Boas minhocas
Isso! Começa a dar referências e vais ver o futuro que tens. Ando aqui eu numa façanha do arco-da-velha para preservar a identidade das galinhas e vem-me agora esta com intimidades de cueiros. Agora que já és jornalista queres ser identificada…que chatice, vais ter um artigo no jornal com o pseudónimo de Cristalinda e ningúem te vai cumprimentar na rua com piropos do género “ainda dizem que as flores não andam; ó que bem que escreve, nem imagina o quanto gostei do seu artigo”. Vá, diz-lhes quem és vaidosona.
Boas bicadas e vê lá se essa tal de Paulinha não te descobre a careca..ou a poupa ou a crista ou a receita de fricassé
Piu!
Amef
Já enviei o texto três vezes, a penúltima a pedido do PortugaSuave e a última a seu pedido. Desconfio que a caixa-correio do Mulherio está com problemas. Confirme aqui se recebeu, pois caso contrário enviar-lho-ei pelo nosso antigo mail (se ainda estiver activo).
Boas minhocas
so para dizer que li e gostei muito de ler.....faz lembrar bem esses bons tempos e o pessoal de que falas
um abraco
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