Dores
Perdoem-me mas esta dor de dentes tolda-me a sensatez. E não julguem que me doem os dentes por negligência higiénica ou por falta de comparência às consultas rotineiras que a minha mulher faz questão de marcar no dentista, doem-me os dentes porque ando há anos a roer com o miserável estado de coisas a que chegou a nossa terra, isto para não falar de indigestões várias e outras tantas crises de azia, de origem inconclusiva aos olhos dos meios de diagnóstico, mas irrefutáveis nas queixas registadas no relatório clínico do meu médico de família. Diz ele que o meu problema é psicossomático, uma maneira delicada de dizer que não estou bom da cabeça. Se calhar tem razão.
Desta vez doem-me os dentes e não há nenhuma razão física, palpável para que tal aconteça, portanto só posso concluir que o meu organismo reage instintivamente às atrocidades que me são indirectamente infligidas por esta política medíocre que faz da nossa terra um campo baldio, pista de treino para as mais disparatadas acrobacias camarárias: ruas e passeios constituem um verdadeiro trilho desportivo, já homologado pela Federação Nacional de Motocross, e aguardam, perante a passividade dos canenses, a inusitada prova da modalidade à qual a lama de Inverno trará emoção acrescida; os campos sobranceiros à piscina são mais exigentes do que a pista de obstáculos dos Comandos, em Sta. Margarida, e os balneários rivalizam com a ribeira do Matadouro em dia de carnificina; candeeiros destruídos, postes sem luz, paragens de autocarro danificadas, canteiros abandonados, zona industrial moribunda, tudo isto faz lembrar um cenário de guerra, à semelhança daquele que nos entra diariamente em casa via noticiário televisivo, captado lá longe, no território devastado do Iraque ou do Afeganistão.
Isto são factos, situações objectivas, os quais posso avaliar no terreno e clarificar mentalmente, o pior é quando tento interpretar estes factos à luz da razão, quando procuro justificações, motivos e intenções, quando tento perceber o emaranhado de relações políticas e sociais em que orbitamos, os combates e as cedências que protagonizamos, que rumo, que estratégia, que iniciativas. Aqui é que eu me perco, não consigo encontrar um fio condutor que una o passado ao presente, nem concebo que um povo que já deu mostras de tenacidade, enfrentando politicamente adversidades externas de peso, se vergue agora docilmente perante a incompetência da autarquia. Será complexo de (in)coerência pelo facto de nos sentirmos responsáveis pela eleição deste executivo? Se o é não tem razão de ser, pois é perfeitamente legítimo fiscalizarmos, reclamarmos e até insurgirmo-nos perante as acções de quem elegemos, assim elas não correspondam às nossas expectativas. O ónus da coerência não recai sobre o eleitor mas sim sobre quem foi eleito.
Estou doente da cabeça, diz-me o médico, e eu tento convencer-me que é verdade, que as minhas preocupações estão desfocadas, provavelmente está tudo bem, tudo isto é normal, Canas saberá encontrar o caminho da salvação e as minhas dores acabarão por desaparecer. Não é à toa que a história nos consagrou São Salvador e a tradição nos devotou Nossa Senhora das Dores.
1 comentário:
1.O Estado Português distribui pelas autarquias (mais ou menos , bem ou mal não interessa para o caso)determinadas verbas, para que os "gestores" eleitos, as possam distribuir equitativamente pelas populações/aglomerados populacionais.
2. Nenhum gestor (autarca) é dono dessas verbas/fundos.
3. É tão absurdo, o eleito(autarca) se fazer passar por "dono" do dinheiro que é público, como o eleitor(votante), aceitar essa pseudo-condição.
4. Gerir é distribuir, fazer, criar, dar prioridades, reduzir desigualdades etc...
Mas...por cá, gerir é também, distribuir sempre pelos mesmos,criar mais para os mesmos, dar prioridade aos mesmos, acentuar desigualdades
e esperar que os que pouco recebem, se mostrem agradecidos... e (mais ainda!)que dêem eco desse agradecimento!
Assim não há futuro!
Ámen!
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