Canas OnLine

24/08/2008

Não Calarão As Pedras



Caminheiros do Túmulo

por Portuga Suave


9H30. Fim de Agosto. Temperatura máxima prevista 36º. Objectivo: Caminhada que nos levaria à Orca das Pramelas, via Urgeiriça com regresso pelo Casal.Concentrámo-nos a caminho da Urgeiriça. Pensos rápidos para proteger os calcanhares, mais habituados ao doce conforto do pedal da embraiagem e do acelerador que ao percurso pedestre que decidimos de véspera levar a cabo.
Chapéus eram oito, menos um do que os elementos deste grupo incursionista, pois o sol não atemorizou o nosso guia, rapaz voluntarioso mas de poucos recursos de orientação, batedor de outras matas que não estas, como mais tarde se deu conta. Cinco adultos e quatro crianças que, como sabemos, nestas andanças dão o dobro do trabalho e da preocupação, como mais tarde também se haveria de verificar. Água em abundância, o único peso permitido.
Lá fomos com repreensões à esquerda e à direita a cada pincho dos putos enquanto caminhávamos pela estrada da Urgeiriça. Relaxámos quando entramos na mata. A frescura aromática oferecida pelos eucaliptos e pelos pinheiros seculares promoveram de imediato inspirações de bem-estar e comentários irónicos sobre os malefícios daquele ar puro aos fumadores presentes.
Confiantes no instinto de batedor do nosso guia deixámo-nos conduzir mata dentro fora do carreiro, pico aqui pico ali, ai, ui, que não viemos preparados para atravessar tojo e o calor desaconselhou vestimenta mais defensiva. Mas não foi suplício assinalável, pois em menos de 50 metros da estrada, sem hesitações nem sinalizações, o nosso guia levou-nos ao primeiro túmulo.
Esculpido na pedra maciça e talhado na forma poupada de um corpo humano, remetia para tempos remotos mas de nada nos serviram especulações sobre a época e os costumes, pois a sepultura no seu silêncio granítico nada confirmou. Das duas uma: Ou um túmulo com esta simplicidade, sem qualquer inscrição, não é susceptível de grande interesse arqueológico ou, caso contrário, se efectivamente foi possível datá-lo e relacioná-lo historicamente, carece de tratamento patrimonial e de alguma referência informativa local, à semelhança do que foi feito e muito bem no caso da sepultura da Orca das Pramelas.
Foi com estas considerações que abandonámos o local no encalço de outros dois túmulos idênticos que, segundo o nosso dedicado guia, se encontravam perto. Esforçou-se o nosso batedor. Norte, Sul, Este, Oeste, num raio de 1000 metros, mas túmulos nem vê-los. Tumular fiquei eu quando no meio destes desachados perdi um dos meus putos que, na ânsia de encontrar o desencontrado se pirou mata dentro sem aviso nem consentimento. Raio do puto. Qual André qual quê! Depois de muito chamarmos, de muitos palavrões e vitupérios, lá apareceu de dentro da mata, cabisbaixo, sem túmulo nem cor, conformado com a palmada que se adivinhava na minha expressão. Poupei-o com a reprimenda histérica de pai aliviado «à tarde não vais à piscina, sigamos p’ra Orca das Pramelas».11h30.
Sepultura da Orca das Pramelas. Bem conservada e devidamente identificada com placa informativa por iniciativa da Junta de Freguesia de Canas de Senhorim. Uma certa religiosidade envolvia o sepulcro pré-histórico! Indução psicológica por certo. Pausa para apreciar e desidratar. Aqui sim, o monumento apresentava uma construção peculiar já de todos conhecida e devidamente documentada. As pedras teimavam em contar-nos histórias perdidas no tempo e cerimoniais remotos. Que divindades teriam sido invocadas? O Sol, a mãe Terra? Algum sacrifício para recomendar o defunto? Que gentes teriam chorado sob estas pedras, quem teria ido a enterrar (emparedar?) neste local há 6000 anos atrás? Dada a dimensão da câmara alguém importante com certeza ou talvez uma família, um casal. Como seria o aspecto do túmulo completo? Que raio! Porque não falam as pedras.
Ultrapassadas estas reflexões e aliviados da carga da mochila pelas bocas ávidas de água, que o percurso e o sol secaram, contornámos o Paçal e rumámos ao Casal. Colhemos amoras, umas belas uvas (que nos perdoe o dono) e deslumbrámo-nos com a vista da serra na sua dimensão e plenitude. O nosso guia, contrafeito por não encontrar os túmulos resmungava inconformado, «ainda na semana passada cá estive… mas não é fácil, até o Peixoto teve dificuldades em dar com eles», e ia-se redimindo debitando informação complementar, «ali debaixo daquele lago estão umas ruínas romanas» e apontava uma represa que provavelmente servia de bebedouro aos animais da Quinta do Brasileiro ou da Machamba ou lá como é, ou então «esta zona está repleta de romanóides» indicando com a ponta do sapato a orla do caminho onde alguns fragmentos toscos de barro vermelho cozido se desalinham humildes perante a indiferença de quem passa. Ali mesmo, à entrada do Casal. Romanóides, resquícios do Império ali no Casal, à mão de semear? Pelo sim pelo não devia ter trazido um.
Descemos a Rua do Casal que perdeu muito da sua génese pitoresca com aquela camada de alcatrão urbano. Ali adequava-se o velho e característico macdame, mas estamos em Canas, onde estes aspectos e outros que aqui não cabem são objectivamente desprezados pelos irresponsáveis conhecidos. Aliás, que raio de política ou preocupação patrimonial tem este município imberbe para com esta terra quase tão antiga como a portugalidade? Que valores culturais perfilharia o vereador do pelouro da cultura que permitiu esta e outras enormidades? «Botem para lá alcatrão para ver se eles se calam». E nós vamos calando, pois antes assim que umas jantes novas por semestre. Do mal, o menos. Adiante. Ainda na Rua do Casal, do lado direito de quem desce, existe uma inscrição aparentemente antiga preservada numa pedra granítica que encima uma porta construída recentemente. Incompreensível aos nossos olhos despertou-me alguma curiosidade (se alguém souber diga-me sff o que conta aquela inscrição). Mais abaixo, a fachada da capela de S. Caetano remete-nos para 1694, reinava então D. Pedro II, O Pacífico.
Chegámos ao Largo Abreu Madeira, enquadrado pelo magnífico solar que lhe dá o nome e pela Igreja Matriz. O largo, mais pobre agora, desde que lhe retiraram o fontanário e o levaram para o Carvalho (que o levaram para o Carvalho para não dizer outra coisa... lembrei-me agora! Será que era ali, no Carvalho, o seu local original? Mesmo que assim fosse preferia-o no largo, na certeza da minha infância. Paciência). Para compensar, agradável surpresa, coisa já pouco vista por essas vilas fora, a Igreja de S. Salvador acolhia estes caminhantes já exaustos de portas abertas. Abertas é como quem diz, encostadas para preservar a frescura e permitir o retiro espiritual de quem a procura para esse fim. Agradável meta para estes caminheiros de meia-tigela. Ali depositámos os corpos e a alma por breves minutos. Fosse por acção divina ou pela amplitude arquitectónica, desvaneceu-se o cansaço e retemperou-se o espírito. Caminhada cumprida com a satisfação de que nos esperavam uns filetes de Veja (peixe açoriano?) para saciar um apetite que há tempos não experimentava.
Sugiro que façam este ou outros percursos a pé, pois só assim se alcança plenamente a beleza e a ancestralidade de Canas. Chega-nos através dos cheiros, das pedras milenares, da arquitectura senhorial, dos fantasmas industriais, do horizonte maciço da serra. Preenche-nos os poros de orgulho e relembra-nos as raízes da nossa origem, vagamente perdida no bulício do dia a dia. Também nos podem ocorrer memórias mais recentes - Viriatos emboscados nas malhas da República. Destas memórias e outras vindouras não calarão as pedras, assim não nos falte a firmeza, a determinação e o empenho na consolidação de um projecto digno para Canas de Senhorim.
P.S.: Obrigado ao nosso guia, mesmo que dos quatro túmulos só tenha encontrado dois. Pior para ele pois ganhava ao túmulo.
Sexta-feira, Setembro 08, 2006

5 comentários:

PortugaSuave disse...

Agora sim... a composição desejável, os túmulos na sua totalidade.

Município tem a certeza sobre o fundo preto!!!

Cumprimentos

ibotter disse...

Parabéns pelas suas "viagens na nossa terra".Excelente texto!
O blogue regressou à fase inicial --preto- que seria a cor adequada ao que tem acontecido com esta terra "quase tão antiga como a portugalidade". Problemas na barra lateral devem originar retorno ao branco .
É desolador ver o nosso património abandonado(o que fariam alguns para o possuir,até pelourinhos falsos construíram)...mas é o resultado de 150 anos de falta de autonomia admnistrativa e por consequência de mão estendida a um "município imberbe".

PortugaSuave disse...

Fico grato por ter apreciado o "percurso".
Quanto ao património e às particularidades da nossa terra apraz-me registar o empenho desenvolvido neste blogue na sua divulgação e promoção.
Das dificuldades que atravessámos e atravessamos, guardo no íntimo a esperança de que um dia esta terra cumprirá o seu desígnio.

O blogue voltou ao branco. Creio que o favorece, mas isso é matéria de somenos. De qualquer das formas obrigado pelo esclarecimento... e pelas palavras.

Um abraço

Anónimo disse...

Portuga suave o seu texto é emocionante. Os canenses agradecem a sua dedicação e o seu talento.

MANUEL HENRIQUES disse...

@portugasuave

Um texto e tanto caro portuga.
Com Câmara ou sem câmara temos um valioso património pouco divulgado.
A hotelaria local anda distraida ao desperdiçar estes tesouros culturais.