Dos Montes Hermínios a Canas de Senhorim"
Há coincidências felizes. Um casal amigo adquiriu recentemente um apartamento na Arroja, um bairro nos subúrbios de Lisboa. Levaram-me a jantar a um restaurante que confina com o bloco de apartamentos - O Mirante da Amália.
Conforme o nome indica, o local é desafogado, altaneiro e dele podemos estender o olhar sobre os bairros novos de Odivelas. Tem um enquadramento bonito, se atendermos à construção desenfreada que impera lá em baixo, isto porque se situa num complexo desportivo, composto por um campo polivalente, um court de ténis, um passeio pedestre envolvente e um relvado bem tratado. Lá longe, no horizonte, bem acima da cidade de Odivelas destaca-se a serra da Luz, do outro lado da serra adivinha-se Lisboa. O local é calmo e o restaurante aproveita toda esta amplitude através das grandes vidraças da sala. Cá fora, a esplanada é convidativa.
O Mirante da Amália é deliciosamente familiar: o pai, funcional, ao balcão, a mãe na cozinha, verdadeira diva gastronómica, e as duas filhas, simpáticas e solícitas, às mesas, conferem-lhe um ambiente acolhedor e um serviço irrepreensível. A decoração é sinónimo de bom gosto, mas o mais importante, a comida, essa é uma autêntica obra de arte. Os pratos são um convite à contemplação. Têm uma apresentação cuidada, artística, um aspecto suculento, de tal forma que dou comigo, enquanto aguardo a minha vez, indecorosamente a cobiçar as refeições vizinhas. Depois vem o sabor, delicioso a todos os níveis, desde as simples batatas ao elaborado esparregado, desde o cabrito assado ao arroz solto, um festim aos sentidos.
Nesta fase da leitura é natural que vocês se questionem: mas afinal o que é que isto tem a ver com Canas de Senhorim? Já vos explico: este restaurante passou a ser uma referência para mim, de tal forma que passei a frequentá-lo com alguma assiduidade. Depois de ter experimentado diversas iguarias comecei a identificar uma familiaridade suspeita nos sabores, um toque inegavelmente beirão nos cozinhados. Não resisti, perguntei a uma das filhas de onde eram os pais. De uma aldeiazinha perto de Seia, respondeu. Pronto, exclamei eu, está encontrada a razão da minha suspeita, é que eu sou de Canas de Senhorim, que é relativamente perto, e o sabor dos cozinhados da mãe fizeram-me desconfiar, conhece Canas de Senhorim? - não, quando vamos à terra ficamos sempre por lá, não saímos muito, mas o meu pai deve conhecer.
A conversa ficou por ali e eu, satisfeito com a minha perspicácia para os sabores, voltei a atenção para o Cozido à Portuguesa, agora comprovadamente beirão. Passados alguns minutos fui delicadamente interrompido pelo pai, o Sr. Victor, que me pergunta se efectivamente eu sou de Canas. Eu respondo que sim, que sou, e ele entusiasmado surpreende-me desta forma: eu já trabalhei em Canas, e eu precipitado, nos Fornos, na Urgeiriça, não, diz ele, no Café Rossio.
O resto da história é contada pela voz comovida do Sr. Victor Silva, que pela noite fora foi desfiando as suas memórias e me autorizou a publicar o seu relato.
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Sou de Sameice, uma aldeia lá no meio da serra, perto de Seia. Éramos onze irmãos e as dificuldades próprias da altura cedo me obrigaram a ser homenzinho. Por temperamento ou carácter era uma criança responsável, tanto que era frequentemente requisitado lá na aldeia para fazer pequenos serviços, como por exemplo entregar os fatos do alfaiate aos fregueses, isto com oito, nove anos. Fosse outro e o fato chegaria em lindo estado ao destino (risos). Ainda me lembro dos medos que me assaltavam quando tinha que fazer os caminhos da serra, no escuro da noite. Com as gorjetas dos clientes do alfaiate comprava um maço de Kentuckys e fumava os cigarros todos de seguida, não porque gostasse de fumar mas porque tinha ouvido aos mais velhos que os lobos temiam o lume e como tal não atacavam (risos).
Como sabe, nessa altura, estamos a falar por volta de 1972, tudo se sabia, os “informadores” tratavam de manter a rede de informações bem actualizada, para o necessário e o desnecessário, para o bem e para o mal, de maneira que quando o Sr. António João precisou de um rapaz para o café o meu nome foi-lhe recomendado. Nessa altura já trabalhava, comecei aos dez anos, no restaurante Mira Neve em Pinhanços. Como era certinho fui contactado pelo Pedro, o empregado do Café Rossio, não o jogador de futebol, o outro, para ir trabalhar para Canas de Senhorim, tinha então doze anos.
Fiquei a morar na casa do Sr. António João e não tenho uma única razão de queixa dele, tratou-me como um filho, afectuoso e protector, para além disso depositava total confiança em mim, tanto que cheguei a ser eu sozinho a abrir o café. Lembro-me do Zé Tó, o filho, que era da minha idade, criámos amizade e dei-me muito bem com ele, mesmo quando tentava culpar-me das traquinices que fazia. Uma vez foi fumar para a casa de banho e esqueceu-se lá do maço de tabaco, um Sagres, claro que as culpas recaíram sobre mim, a D. Natália assim o pensou, mas o Sr. António João não se deixou enganar, chamou-me à parte e disse-me para não me preocupar pois sabia que não tinha sido eu. Era uma pessoa espectacular e não me pagava mal, atendendo à minha idade. Ganhava 750$00 por mês.
As gentes da serra chamavam ao cruzamento do Café Rossio a “cruz”, dali podíamos derivar para Viseu, Mangualde ou Coimbra. Era, para um rapaz vindo do monte, como eu, o centro do mundo. Recordo muito bem, para além do café e dos senhores distintos que o frequentavam, uma casa paredes meias com o estabelecimento, com umas longas escadas em pedra, propriedade de um senhor do qual não me lembro o nome mas que tinha duas filhas de fazer parar o trânsito (risos) e a ourivesaria do Sr. Pereirinha, mesmo em frente, por sinal também ele pai de uma menina muito bonita.
Ia a casa uma vez por mês, porém as saudades e o facto de me sentir muito desamparado, afinal eu só tinha doze anitos, levaram que ao fim de seis meses me viesse embora. Expliquei ao Sr. António João as minhas razões e ele, compreensivo, fez as contas, pagou-me tudo e levou-me à camioneta. Despediu-se emocionado e ainda me deu 50$00 extra.
Segui a minha vida, e muito mais tarde, quando voltei a Canas para reviver o passado deparei-me com um banco no sítio do café e a triste notícia que o Sr. António João tinha falecido. Nunca mais lá voltei e agora que me diz que este mês vão homenagear o Sr. António João fico a pensar se não deveria voltar a Canas de Senhorim.
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O Sr. Victor e a esposa, D. Amália
Fiquei embevecido com o relato do Sr. Victor, imaginando a criança vinda dos Montes Hermínios a desbravar veredas sob a protecção dos Kentucky, e apreciando agora, no recato do Mirante da Amália, a harmonia da sua família que, como diria o mestre Aquilino, serve pratos tão prazenteiros aos olhos como saborosos ao paladar.
1 comentário:
Um belo "relato" Portuga Suave...e 3 beldades recordadas de "fazer parar o transito"!
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