Canas OnLine

14/02/2009

Editorial



A pessoalidade canense
por Portuga Suave

Canas comove. Escolhi o verbo comover de propósito pois ele é apropriado à dualidade de impressões que Canas transmite.
Podemos comover-nos de várias formas, o espectro da comoção é tão alargado que pode ir da mais simples emoção ao completo arrebatamento ou da pura alegria à irremediável tristeza. Eu, no que toca a Canas, oscilo de uma extremidade à outra, conforme as circunstâncias.
Quando penso sobre a identidade canense, não no sentido lato da expressão, não aquela identidade que resulta directamente da nossa ancestralidade, mas aquela outra que nos identifica individualmente como membros de uma comunidade, questiono-me sobre de que barro é feito o actual canense, o que lhe vai no âmago enquanto membro da comunidade e qual a relação pessoal com os outros e com a própria terra.
As ambiguidades da nossa história recente influenciaram para o bem e para o mal muitos dos elementos que determinam o comportamento vulgar dos canenses.
No século XX, com o advento da indústria, Canas recebeu no seu seio gente de todo o lado, de tal forma que se fizermos uma breve incursão ao passado dos nossos pais e avós, verificamos que a maior parte não era efectivamente canense, isto é, a moldura do actual canense não é assim tão genuína, todos nós temos um pouco de achadiços. Pode dizer-se que isso não é assim tão importante uma vez que as novas gerações nasceram cá, mas não podemos ignorar que estas novas gerações absorveram dos pais referências diversas que por certo acabaram por formar a actual "pessoalidade canense".
A "pessoalidade canense", se assim lhe posso chamar, tem traços bem definidos. Embora assente numa miscelânea de sentimentos e interesses arbitrários, radica predominantemente em factores como a notoriedade, o proveito e a ascensão social, não excluindo contudo outros aspectos, como o orgulho na terra e o bem estar colectivo, especialmente no que diz respeito às infra-estruturas comunitárias. De que vale ter a casa e o jardim bem arranjadinhos se a coisa pública anda pelas ruas da amargura. Digamos que projectamos na terra as nossas aspirações pessoais, sem abdicarmos da natureza individualista e das vantagens imediatas que daí podemos tirar. Não podemos esquecer que as pessoas vieram para Canas para singrar na vida, aproveitando as novas oportunidades que a indústria oferecia, com tudo o que isso implica. Assim, em traços gerais, os canenses podem revelar paixão, abnegação, iniciativa, generosidade e altruísmo, à mistura, na mesma proporção, com inveja, indiferença, vaidade e mesquinhez. E isto é transversal na sociedade canense, o próprio confronto carnavalesco sublima o espírito competitivo e exprime a tendência separatista que caracteriza esta pessoalidade. Se a isto somarmos as características beirãs que a geografia nos concedeu, como sejam a hospitalidade e aquela típica introspecção deste povo confinado entre serras, ficamos com um desenho razoável do canense comum. Mas há mais...
Com o desaparecimento das empresas que sustinham o estatuto social da vila, e o dos próprios canenses, estes interiorizaram uma sensação de perda pessoal e o pessimismo compreensível de um futuro pouco auspicioso. Esta relação é extrínseca, já não é um problema de cada um: se Canas perde, eu perco, perdemos todos. Perante a adversidade a reacção foi admirável, acrescentaram à sua natureza novos elementos, como o inconformismo e a teimosia e reformularam a forma de ser canense, aditando à sua pessoalidade um aguerrido sentimento colectivo, mais abrangente que o anterior. Sobrepôs-se à causa privada a causa pública e elegeu-se como prioridade a autonomia política da terra, considerada indispensável à consolidação de um futuro que não traísse as expectativas que lhes foram legadas por pais e avós. Em suma, os interesses particulares acabaram por alicerçar na comunidade uma forte consciência social, que de resto já lhe era familiar, não tivesse este povo raízes maioritariamente proletárias - o canense transformou-se assim num animal político, habitual residente no circo da política nacional, mas pouco dado a domesticações.
Registo uma certa alegria de sentir a minha terra e as pessoas que a habitam e que lhe dão a tónica comovente com que iniciei este texto, mesmo com situações por vezes muito pouco recomendáveis, relevando, porque humana, esta gente que, embora simpática e amiga do seu amigo, franca e de coração ao alto, pode surpreender-nos ao virar da esquina com aquela necessidade irresistível de dizer mal, de invejar o sucesso alheio, de rebaixar o semelhante, que é a pior forma de elevar a auto-estima e revela no ser humano a mais pura iniquidade.
Também eu sou canense e provavelmente reconhecível nos defeitos e virtudes identificados. É necessário reflectir sobre as nossas fraquezas para melhor compreendermos a nossa terra e percebermos afinal o que é ser canense. Talvez seja por isto que Canas me comove, afinal ela é um reflexo de mim próprio.

11 comentários:

Cingab disse...

O retracto está bem feito, as extrapolações não!

Anónimo disse...

soberbo

PortugaSuave disse...

Pois é caro Ibotter generalizar é perigoso mas olhe que no geral cabe sempre o particular...

Cingab
Eu até acho que as extrapolações compõem o retrato, lol

ibotter disse...

Somos tb aqueles a quem (no passado) tiraram "qualquer coisa de muito importante" ... modernamente vítimas de "roubo por esticão". Marcas que MARCAM!

MANUEL HENRIQUES disse...

@PortugaSuave

Perturbador o seu texto. Penso contudo que o retrato poderia servir a várias vilas e aldeias da Beira-Alta. Somos Gente de bem, mas com esta propensão para o bairrismo e para exarcerbar contendas. Mas isto também nos dá uma alma grande!!.

PortugaSuave disse...

E tudo vale a pena quando a alma não é pequena, não é Manel?
Cumprim

Ana Mafalda disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ana Mafalda disse...

@Portuga este texto sempre me comoveu ... acho que já lho tinha dito, num outro contexto!
Guardei-o até no meu "memorial" ...

É um retrato escrito, visualiza-se como se de um postal ilustrado se tratasse, atinge-nos, sente-se, pressente-se até pelos efeitos que nos atingem ...

Vivemos dias de perfeita encruzilhada e contudo a "pessoalidade canense" é uma constante ... e contudo a vida é sempre a perder!

Parabéns pelo texto, obg pelo momento (re-editado)!

Não reconheço a 1ª imagem !!!
Onde é ???

PortugaSuave disse...

"Graffiti" no campo da piscina...

Ana Mafalda disse...

@Portuga, obg, entretanto identifiquei ... é pois uma porção do mural :)

xuxa a lista disse...

Ver Canas por um canudo ao longo de muitos anos dá-nos uma visão toldada da realidade. É no entanto bonito ver que há gente que deseja que isso assim seja.

Canas é uma terra frustrada. Frustrada por ser espoliada do seu desenvolvimento. Os principais culpados somos nós que não soubemos lutar devidamente contra quem nos oprime.

Canas, ou a imagem que dela irradia, muito por culpa de quem a representa legitimamente, é, em minha opinião, um meio para atingir um fim, onde o particular se sobrepõe e canibaliza o colectivo.

Temos o que merecemos? Começo a pensar que sim.