"Chorámos agarrados os colegas mortos"
As minhas memórias estão marcadas pelo sangue daqueles que vi combater e tombar em nome da Pátria. E também pela fome e sede constantes por que passei durante dois anos.
Assentei praça e fiz a recruta no Regimento de Infantaria 7, em Leiria. Passados seis meses fui tirar especialidade de atirador de morteiro de calibre 60 mm. Sabia que, mais dia menos dia, ia para a guerra do Ultramar e não me enganei. Em Outubro de 1965 embarquei, contrariado e revoltado, no navio Niassa com destino à Guiné-Bissau. Na viagem, que demorou perto de uma semana, passei muita fome e sede e apercebi-me logo daquilo que me iria acontecer nos dois anos seguintes. Chegámos desidratados.
Os primeiros três dias deviam ser de descanso para a formação da companhia, mas sofremos logo a primeira emboscada: estávamos a atravessar um rio de barco, com destino ao aquartelamento de São Domingos e Varela, e fomos atacados a tiro por uma força inimiga. Quem sabia nadar salvou-se e os outros foram ajudados ou morreram. Foi muito triste ver morrer cinco camaradas de repente e ainda só estávamos há uma semana na Guiné. Quando ficámos a salvo agarrámo-nos todos uns aos outros e chorámos as mortes dos nossos militares.
Uma semanas depois do primeiro massacre, aconteceu o segundo. O meu pelotão estava parado em Biambi e foi atacado pelos guerrilheiros. As nossas casernas eram valas comuns, sem qualquer tipo de defesa. Tivemos mais cinco baixas. O ataque foi muito violento e eu fiquei gravemente ferido num braço. A confusão foi tão grande que o nosso comandante desabafou de uma maneira que nunca mais me saiu da cabeça: 'Em caso de dificuldade extrema guardem pelo menos a última bala para vocês próprios!' Uns meses depois, a minha companhia foi desviada para o quartel de Ancheia, onde parecia estarmos fora da guerra, o que se revelou ser puro engano. Fomos atacados várias vezes pela população, que de dia gostava de nós, mas de noite nos via como inimigos.
Em Junho de 1966 fomos alvo de outro ataque violento. Os inimigos queimaram as pontes dos rios e nós, para fugir, tivemos de passar um deles por cordas, com a G3 e o saco às costas, com cuidado porque havia muitos crocodilos esfomeados. Na altura, valeu--nos a intervenção dos aviões Fiat da Força Aérea. Mas a situação no campo de batalha esteve complicada, porque ao dispararem para o meio do mato denso causaram involuntariamente baixas entre as nossas forças. No regresso ao quartel houve mais confrontos com os inimigos, mas o pior foi fazer 40 km a pé, numa selva pejada de cobras venenosas, passando muita fome e sede.
Por aquela altura fomos, pela primeira vez, à bonita praia de Varela Suzamar, mas mais valia não o termos feito. A água estava contaminada e ficámos com graves problemas de pele. Muitos camaradas estiveram às portas da morte ou ficaram com marcas para sempre. Antes da guerra, aquela praia era muito procurada por turistas portugueses, mas quando lá estivemos as casas de campismo estavam destruídas.
No quartel de Biambi, as condições eram muito precárias: dormíamos em valas comuns e quando decidimos cortar troncos para construir uns barracões mais dignos com a nossa condição de combatentes, mas humanos, os turras não descansaram enquanto não os incendiaram. Num dos confrontos, fomos apanhados desprevenidos e tivemos mais duas baixas; dois camaradas executados a sangue-frio, sem hipóteses de defesa. Por incrível que pareça, o que nos valia muita vezes eram os mosquitos, que não nos deixavam dormir e assim estávamos sempre em alerta. Houve semanas em que não dormi por causa dos insectos mas, sobretudo, por não conseguir esquecer a barbaridade de uma guerra que inundou de sangue a nossa Pátria.
Mas nem só na morte se baseia a minha passagem por África. Durante quase dois anos também conheci, fora da companhia, muita gente boa e passámos bons tempos, com muitas bebedeiras e farras. Eu era dos mais activos. Foi minha a ideia de criar uma conjunto musical – Kassum Kup’ –, com instrumentos de pouca qualidade, mas afinados. Fizemos grande sucesso, sobretudo junto das mulheres. Éramos os artistas da zona, mas muitas vezes só tivemos homens na plateia – as chamadas ‘madames de chicote’. Um dia fomos premiados com a actuação de um artista a sério: o Badaró. Ofereceu-nos um espectáculo memorável.
No entanto, estes divertimentos não bastavam para fazer esquecer a fome, que não nos largava. Uma vez, durante uma operação de patrulhamento, um colega disparou cinco tiros, para matar uma gazela, mas acabou por abater um macaco gigante. Levámos o animal para o quartel, que foi cortado aos bocadinhos e cozinhado. Muitos camaradas estavam, de início, com relutância em comê-lo, mas a fome era tanta que não se podiam dar ao luxo de recusar aquela carne rija. Eu só provei o molho, que até nem estava muito mau.
Em meados de 1967 regressei à Metrópole. Lembro com saudade os bons tempos passados com os camaradas, mas as principais recordações estão pintadas pelo sangue dos militares mortos a defender a Pátria.
'UMA VIDA MUITO COMPLICADA MARCADA POR VÁRIOS COMBATES'
Quando regressou da Guiné-Bissau, José Maria da Cruz foi viver para Canas de Senhorim. Casou, teve três filhos e candidatou-se PSP. Esteve cinco anos a patrulhar as 'complicadas' ruas de Lisboa, mas não descansou enquanto não obteve autorização de transferência para Viseu, o que conseguiu 'com muito custo'. Nesta cidade, esteve ao serviço durante 30 anos, até se reformar. 'Na polícia também vivi situações muito complicadas. É claro que não foi tão difícil como combater na guerra do Ultramar, mas muitas vezes tive de ter sangue frio para resolver algumas situações a bem', refere o ex--combatente, que agora passa os dias a descansar em casa. 'Tive uma vida muito complicada, marcada sempre por muitos combates', recorda José Maria da Cruz.
A Minha Guerra - José Maria da Cruz, Guiné-Bissau
Assentei praça e fiz a recruta no Regimento de Infantaria 7, em Leiria. Passados seis meses fui tirar especialidade de atirador de morteiro de calibre 60 mm. Sabia que, mais dia menos dia, ia para a guerra do Ultramar e não me enganei. Em Outubro de 1965 embarquei, contrariado e revoltado, no navio Niassa com destino à Guiné-Bissau. Na viagem, que demorou perto de uma semana, passei muita fome e sede e apercebi-me logo daquilo que me iria acontecer nos dois anos seguintes. Chegámos desidratados.
Os primeiros três dias deviam ser de descanso para a formação da companhia, mas sofremos logo a primeira emboscada: estávamos a atravessar um rio de barco, com destino ao aquartelamento de São Domingos e Varela, e fomos atacados a tiro por uma força inimiga. Quem sabia nadar salvou-se e os outros foram ajudados ou morreram. Foi muito triste ver morrer cinco camaradas de repente e ainda só estávamos há uma semana na Guiné. Quando ficámos a salvo agarrámo-nos todos uns aos outros e chorámos as mortes dos nossos militares.
Uma semanas depois do primeiro massacre, aconteceu o segundo. O meu pelotão estava parado em Biambi e foi atacado pelos guerrilheiros. As nossas casernas eram valas comuns, sem qualquer tipo de defesa. Tivemos mais cinco baixas. O ataque foi muito violento e eu fiquei gravemente ferido num braço. A confusão foi tão grande que o nosso comandante desabafou de uma maneira que nunca mais me saiu da cabeça: 'Em caso de dificuldade extrema guardem pelo menos a última bala para vocês próprios!' Uns meses depois, a minha companhia foi desviada para o quartel de Ancheia, onde parecia estarmos fora da guerra, o que se revelou ser puro engano. Fomos atacados várias vezes pela população, que de dia gostava de nós, mas de noite nos via como inimigos.
Em Junho de 1966 fomos alvo de outro ataque violento. Os inimigos queimaram as pontes dos rios e nós, para fugir, tivemos de passar um deles por cordas, com a G3 e o saco às costas, com cuidado porque havia muitos crocodilos esfomeados. Na altura, valeu--nos a intervenção dos aviões Fiat da Força Aérea. Mas a situação no campo de batalha esteve complicada, porque ao dispararem para o meio do mato denso causaram involuntariamente baixas entre as nossas forças. No regresso ao quartel houve mais confrontos com os inimigos, mas o pior foi fazer 40 km a pé, numa selva pejada de cobras venenosas, passando muita fome e sede.
Por aquela altura fomos, pela primeira vez, à bonita praia de Varela Suzamar, mas mais valia não o termos feito. A água estava contaminada e ficámos com graves problemas de pele. Muitos camaradas estiveram às portas da morte ou ficaram com marcas para sempre. Antes da guerra, aquela praia era muito procurada por turistas portugueses, mas quando lá estivemos as casas de campismo estavam destruídas.
No quartel de Biambi, as condições eram muito precárias: dormíamos em valas comuns e quando decidimos cortar troncos para construir uns barracões mais dignos com a nossa condição de combatentes, mas humanos, os turras não descansaram enquanto não os incendiaram. Num dos confrontos, fomos apanhados desprevenidos e tivemos mais duas baixas; dois camaradas executados a sangue-frio, sem hipóteses de defesa. Por incrível que pareça, o que nos valia muita vezes eram os mosquitos, que não nos deixavam dormir e assim estávamos sempre em alerta. Houve semanas em que não dormi por causa dos insectos mas, sobretudo, por não conseguir esquecer a barbaridade de uma guerra que inundou de sangue a nossa Pátria.
Mas nem só na morte se baseia a minha passagem por África. Durante quase dois anos também conheci, fora da companhia, muita gente boa e passámos bons tempos, com muitas bebedeiras e farras. Eu era dos mais activos. Foi minha a ideia de criar uma conjunto musical – Kassum Kup’ –, com instrumentos de pouca qualidade, mas afinados. Fizemos grande sucesso, sobretudo junto das mulheres. Éramos os artistas da zona, mas muitas vezes só tivemos homens na plateia – as chamadas ‘madames de chicote’. Um dia fomos premiados com a actuação de um artista a sério: o Badaró. Ofereceu-nos um espectáculo memorável.
No entanto, estes divertimentos não bastavam para fazer esquecer a fome, que não nos largava. Uma vez, durante uma operação de patrulhamento, um colega disparou cinco tiros, para matar uma gazela, mas acabou por abater um macaco gigante. Levámos o animal para o quartel, que foi cortado aos bocadinhos e cozinhado. Muitos camaradas estavam, de início, com relutância em comê-lo, mas a fome era tanta que não se podiam dar ao luxo de recusar aquela carne rija. Eu só provei o molho, que até nem estava muito mau.
Em meados de 1967 regressei à Metrópole. Lembro com saudade os bons tempos passados com os camaradas, mas as principais recordações estão pintadas pelo sangue dos militares mortos a defender a Pátria.
'UMA VIDA MUITO COMPLICADA MARCADA POR VÁRIOS COMBATES'
Quando regressou da Guiné-Bissau, José Maria da Cruz foi viver para Canas de Senhorim. Casou, teve três filhos e candidatou-se PSP. Esteve cinco anos a patrulhar as 'complicadas' ruas de Lisboa, mas não descansou enquanto não obteve autorização de transferência para Viseu, o que conseguiu 'com muito custo'. Nesta cidade, esteve ao serviço durante 30 anos, até se reformar. 'Na polícia também vivi situações muito complicadas. É claro que não foi tão difícil como combater na guerra do Ultramar, mas muitas vezes tive de ter sangue frio para resolver algumas situações a bem', refere o ex--combatente, que agora passa os dias a descansar em casa. 'Tive uma vida muito complicada, marcada sempre por muitos combates', recorda José Maria da Cruz.
A Minha Guerra - José Maria da Cruz, Guiné-Bissau
2 comentários:
Mereciam muito mais estes Homens que lutaram, e interiormente ainda lutam, pela sua Pátria. Mas esta Pátria desdenha os seus esforços de aquém e além mar. A maioria dos nossos governantes tem vergonha da dor e do sofrimento de todos eles e esqueceu-os logo após a mal engendrada descolonização.
A nossa malfadada política já vem de longe...e nem o exemplo dos outros colonizadores soubemos seguir.
Boas Festas para todos e um melhor 2009!
Manuel Vieira
Este senhor tem de certeza absoluta algo mais para nos dizer sobre as Guerras, isto é apenas um resumo, um bom resumo. Gostei.
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